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A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch


A Segunda Guerra Mundial é uma fonte inesgotável de histórias humanas. O sangue, a crueza da dor e o cheiro de morte muitas vezes se confundiram com generosidade, coragem e, por que não, amor. Em um paradoxo difícil de explicar, há muita humanidade na guerra.

Esse conflito se apresentou com tantas facetas, que apenas o esforço de memória e a produção de informações permitiu uma costura de todos os retalhos que compõem essa colcha. A guerra não tem rosto de mulher soma-se a este esforço de registrar aqueles anos. Só que Svetlana Aleksiévitch escolheu dar voz à realidade do feminino no campo de batalha, descortinar todo o padecimento das mulheres russas como mães, amigas, namoradas, esposas e soldados. Parece uma guerra que não existiu, já que nunca ouvimos falar sobre o que ela nos conta. São depoimentos bem fortes.

“Mas por quê? — perguntei-me mais de uma vez. — Por que, depois de defender e ocupar seu lugar em um mundo antes absolutamente masculino, as mulheres não defenderam sua história? Suas palavras e seus sentimentos? Não deram crédito a si mesmas. Um mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida… Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres.”

A Segunda Guerra Mundial A história costuma ser contada pelo viés dos vencedores. Nós, aqui do Ocidente, sabemos

um tanto de coisas e decisões heróicas dos Estados Unidos e Inglaterra para o fim do nazismo. A participação da União Soviética, no entanto, nos é apresentada como ambígua e nem de longe retrata o tamanho do conflito e do sacrifício do povo (homens e mulheres, agora sabemos!) russo. A disputa ideológica da guerra fria superestimou os feitos dos exércitos anglo-americano, minimizando e distorcendo o papel dos soviéticos.

A Segunda Guerra Mundial, na verdade a continuidade da primeira, começou oficialmente com a invasão da Polônia pela Alemanha, em 1939. As tensões estavam presentes bem antes. A composição geopolítica da Europa era tensa. Se por um lado Inglaterra e França estavam atentas ao apetite expansionista alemão, por outro também temiam a ampliação da influência do regime comunista da União Soviética no continente. Os acordos de Munique (1938) entre Inglaterra, França e Itália (encorajados pelos Estados Unidos) deixaram o país soviético isolado e vulnerável ao ataque alemão. Sem conseguir o compromisso dos ingleses e franceses na constituição de uma frente de defesa contra os avanços alemães, a União Soviética assinou com a Alemanha um tratado de não agressão mútua. Permitiu também a re-anexação da Galícia, tomada dos soviéticos pelos poloneses com apoio da França.

O tratado de não agressão ressoou como uma bomba no ocidente que acusou os soviéticos de traidores. Entre quatro paredes, no entanto, os analistas políticos sabiam que era a forma da União Soviética ganhar algum tempo para o combate inevitável com a Alemanha. De fato, em 1941, a Alemanha marchou sobre o território de Stálin, com grande poderio bélico. Os soviéticos adotaram a estratégia da terra arrasada: os cidadãos soviéticos deveriam resistir à invasão a qualquer custo. Se não fosse possível, deveriam queimar e destruir quaisquer meios de subsistência que pudessem servir às tropas nazistas. Os anos de 1942 e 1943 foram de batalhas ferozes em campo sovietico. As ações do Exército Vermelho, a resistência da população e o inverno rigoroso deu início à derrota da Alemanha nazista já no final daquele mesmo ano. Quando aconteceu o dia D, como ficou conhecida a invasão da Normandia pelos Aliados, a União Soviética já tinha expulsado sozinha os alemães do seu território, chegado à fronteira da Polônia e libertado muitos países do leste europeu.

A Grande Guerra Patriótica, como é conhecida a 2a. Guerra Mundial, na antiga União Soviética, levou mais de 25 milhões de vidas. Foi a nação que teve mais mortos na sua população. Entre os fatores do sucesso sovietico destacam-se o papel do Partido Comunista na mobilização e conscientização da população, bem como a estratégia de levar toda a indústria nacional para trás dos montes Urais, permitindo o abastecimento de armas e equipamentos até a vitória final.

Para refletir: O patriarcado é um sistema que define o lugar das mulheres e invisibiliza o nosso protagonismo, de modo a nos manter presas no mundo privado da casa e na função do cuidado. Durante a guerra, as mulheres foram convocadas para o trabalho nas fábricas e nos hospitais, mas suas histórias no front foram apagadas. Em um trecho, Svetlana fala do problema linguístico que muitas vezes nos exclui do mundo do trabalho. Palavras que não tinham gênero feminino porque as mulheres não eram aceitas em certas ocupações, como tanquista, soldado de infantaria, atirador de fuzil. Percebe algum paralelo com a resistência de muitas pessoas quanto ao uso da palavra Presidenta de poucos anos atrás?

Svetlana Aleksiévitch é uma jornalista, que se define como mulher-ouvido. Essa sua característica permitiu que ela costurasse memórias para construir uma obra incisiva sobre a história da Rússia. Seus livros são cheios de vozes e histórias não oficiais, narradas por pessoas comuns. Tem como centro, não fatos cronológicos em si, mas como eles afetaram a vida dos seus ouvintes. Ela só fala russo, ficando de certa forma imersa na trajetória e reveses do seu país. Pelo conjunto da sua produção, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2015. Esteve na FLIP em 2016, para lançar A mulher não tem rosto de mulher no Brasil.

De Svetlana Aleksiévitch, @Circulares também tem o Fim do Homem Soviético.





 
 
 

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