Carta a Milton Hatoum
- circulareslivros
- 3 de set. de 2021
- 3 min de leitura
Que 1 hora serena, resoluta, indignadamente sensacional foi aquela, ontem, com você na @circulares.livros, meu caro Milton Hatoum!
(Tenho amigos jornalistas, professores até, que vejo reclamando da quantidade de informação provida por não-jornalistas, agora que, para o bem e para o mal, as redes sociais acabaram com o monopólio jornalístico na produção de notícias. É sintomático que os mesmos amigos não prefiram destacar a avacalhação que as Veras Magalhães da vida promovem num Roda Viva.)
Lendo “O melhor tempo é o presente”, vi o que me parece ser uma vantagem que a romancista Nadine Gordimer teve em relação a você, Milton: na África do Sul, a política e o jornalismo não falharam tão miseravelmente quanto falharam e falham nesses nossos (nem sempre tão) tristes trópicos. Na República da África do Sul, expor a realidade oficialmente escondida ou negada não ficou sob a responsabilidade ética dos romancistas.
Fica me parecendo que a Nadine foi, certamente mais do que eu, leitora do Jacques Pauw, do Max du Preez, do Vrye Weekblad, desde quando ainda imperava o regime do apartheid. Dificilmente ela teria imaginado que os opositores negros capturados pela polícia política eram, depois de torturados, reduzidos pelo fogo a pó (em 3 horas, testemunha o capitão de quem falo no parágrafo seguinte) enquanto seus assassinos se regalavam com um braai regado a Devil’s Peak King’s Blockhouse IPA à beira do Limpopo, na fronteira com Moçambique.
Detalhes assim a Nadine pode ter sabido em 1989, lendo a célebre entrevista do capitão Dirk Johannes Coetzee (comandante do esquadrão da morte baseado em Vlakplaas e subordinado ao gabinete do presidente FW de Klerk, substituído pelo coronel Eugene “Prime Evil” de Kock, julgado, condenado e preso entre 1996 e 2015, atualmente e pelo resto da vida em liberdade condicional) ao repórter Jacques Pauw, entrevista mancheteada na capa do Vrye Weekblad, semanário da Cidade do Cabo sempre publicado em Afrikaans.
(Imagine um repórter do Movimento conseguir uma entrevista com um insatisfeito Sérgio Paranhos Fleury, em troca da confissão sendo retirado do Brasil e realocado e protegido –pela ALN do Carlos Marighella…– com a família na Argentina, todos sob falsa identidade. Pois foi algo assim que o Jacques Pauw e seu editor Max du Preez conseguiram com o então chefe da segurança do ANC na clandestinidade, Jacob Zuma. Tanto o du Preez quanto o Pauw continuaram livres (embora, obviamente, processados pela justiça realmente existente no apartheid) e vivos, com o Pauw publicando, em novembro de 2017, o livro-reportagem “The President’s Keepers: Those keeping Zuma in Power and Out of Prison”.
Sem poder esquecer que Nelson Rolihlahla Mandela foi capturado e preso em 1962 como sabotador, militante do Umkhonto we Siswe, braço armado do ANC, permanecendo na prisão por 27 anos, jamais tendo sido suicidado, como é notório. O mesmo Madiba, aliás, que, candidato à presidência, não hesitou em se reunir com políticos e generais africâneres como P.W. “Die Groot Krokodil” Botha, Pik Botha e Constand Viljoen e, mostrando a eles que um banho de sangue não deveria interessar a ninguém, especialmente à minoria branca, construir um acordo político que viabilizou a aceitação dos resultados das eleições de 1994, que deram 63% dos votos válidos ao ANC liderado pelo Mandela.

(Escrito por Nilson Figueiredo Filho, após a live da Circulares com o escritor Milton Hatoum).
De Milton Hatoum, você encontra na Circulares: Dois Irmãos A Cidade Ilhada A Noite da Espera (livro 1) Pontos de Fuga (livro 2)
O livro O melhor tempo é o presente, de Nadine Gordimer também está nas estantes da Circulares. Fizemos um texto aqui sobre o apartheid. Vale conferir.
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