top of page

Homens sem Mulheres, autêntico Murakami


A intertextualidade, as referências à cultura pop, as músicas que compõem as atmosferas oníricas, a memória construída como âncora, o surrealismo e a profundidade sentimental dos personagens, a narrativa em linha reta, conduzindo o leitor direto para uma queda num vácuo, como passagem para outros mundos, são elementos que caracterizam Haruki Murakami e estão presentes nessa coletânea de sete contos.

Se, por um lado, os homens são os narradores e padecem de inadequação plácida, de solidão dilacerante, de incompreensão atroz quanto ao universo feminino; por outro, são enganados, traídos, ludibriados ou simplesmente demonstram a impossibilidade de viverem sem as mulheres. Engana-se quem pensa que os textos são pesados ou soturnos. Há humor nas incoerências ilógicas, nas loucuras bizarras, nas pontas soltas das histórias, tudo formando um todo estranhamente coeso e complexo — contos bem à Murakami. E, por mais que a mulher seja a representação iconoclasta da perfídia mais que sórdida, ela é adorada, enaltecida, festejada, enobrecida, admirada, idolatrada. Sem as mulheres a vida é vazia, árida e sem sentido; não há sonhos ou imaginação. A mulher, apesar de fugidia e traiçoeira, cruel e irracionalmente fria, é o centro do universo masculino.

“Um dia, de repente, você vai ser um dos homens sem mulheres. Esse dia chegará subitamente, sem nenhum aviso prévio nem sinal, sem premonição nem pressentimento, sem uma tosse que seja ou uma batida na porta. Ao virar a esquina, você vai descobrir que já está ali. Mas não poderá voltar atrás. Uma vez que virar a esquina, será o único mundo para você. Nesse mundo você estará entre os ‘homens sem mulheres’. Em um plural infinitamente indiferente.”


Aos contos: Drive My Car. É uma referência a uma música dos Beatles. Nesse conto, um ator de teatro, viúvo, com problemas de visão, contrata uma mulher, mais jovem e feia, para ser sua motorista. Naturalmente, revelações catárticas surgem da convivência no espaço exíguo do Saab 900.

“ — Mas será que nós conseguimos compreender alguém por completo? Mesmo que amemos esse alguém profundamente?”

Yesterday. Título que faz outra referência aos Beatles é o fio da memória de Tanimura. Seu amigo excêntrico, Kitaru, cantava essa canção, fazendo paródias e substituições, no dialeto de Kansai, que aprendeu depois de adulto. Tanimura, ao contrário, havia feito questão de esquecer esse dialeto, apesar de vir de Osaka, onde o dialeto é falado, para reinventar-se em Tókio. O cerne do conto é a relação em crise de Kitaru com a namorada perfeita, Erika. Kitaru pede que o amigo saia com sua namorada para mantê-lo informado sobre os novos interesses da jovem que havia ingressado na universidade; enquanto ele, Kitaru, estava perdido, sem saber que rumo tomar na vida.

“Como era curiosa [a música Yesterday cantada por Kitaru], eu continuei a me lembrar bem dela por um tempo, mas depois ela foi ficando vaga até que me esqueci quase por completo. Só me lembro de fragmentos, e já nem tenho mais certeza se estão corretos. Afinal, a memória é, inevitavelmente, algo sempre recriado”.

Órgão Independente. Um escritor quer deixar registrada a vida de um cirurgião estético, Dr. Tokai, que tem uma vida confortável, abastada, cheia de privilégios, alegrias fortuitas e sexo casual. Mantém vários casos ao mesmo tempo com mulheres casadas e solteiras, sem assumir nenhum compromisso ou vínculo mais sólido, até que se apaixona por uma mulher mais jovem e casada, e sua vida perde todo o sentido porque ela o abandona.

“Há um poema clássico japonês que diz: ‘Depois do nosso encontro, percebo o quanto meu coração era livre de aflições’— disse Tokai.”

Sherazade. A contadora de história deste conto recebe o nome de Sherazade, referência às As Mil e Uma Noites, porque não revela seu nome ao narrador. Ela é uma mulher de mais ou menos 35 anos, casada, com filhos, que abastece e cuida da casa de Habara, além de cozinhar as refeições do rapaz que vive recluso na House — não se sabe bem por que está ali e onde é esse lugar. Ele desconhece quaisquer informações acerca da vida pessoal daquela mulher diligente com as tarefas domésticas e com o sexo que praticam. Ao final do coito, Sherazade sempre lhe conta uma longa história que é interrompida às 16h30, para que possa voltar para sua vida cotidiana; e, dessa forma, Sherazade prolonga por dias suas narrativas, conduzindo Habara para outros mundos, fora da prisão de si mesmo.

“Outra coisa que deixava Habara confuso era o fato de que o sexo com Sherazade e a história contada por ela estavam intrinsecamente relacionados.”

Kino. Ao descobrir que sua mulher o traía com um colega de trabalho, Kino abandona seu emprego e sua casa e monta um bar, onde cria uma atmosfera intimista e aconchegante. Coloca para tocar seus vinis, ouvindo solos de piano de Art Tatum, Coleman Hawkins, Billie Holiday e tantos outros. Lê os livros que sempre quis ler e deixa a vida passar. Até que um dia, debaixo do salgueiro, em frente ao bar que tinha se tornado uma espécie de porto seguro para Kino, surgem cobras, referidas no texto como animais mitológicos e inteligentes, mas que servem como metáfora das mulheres e de seus sentimentos subliminares.

“A única coisa que podia fazer, com muita dificuldade, era encontrar um local a que pudesse se prender, para impedir que o coração, que havia perdido a profundidade e o peso, ficasse perdido a esmo. O barzinho chamado Kino no fundo de um beco se tornou esse lugar concreto. E se tornou um espaço estranhamente confortável — — o que foi apenas uma consequência.”

Samsa apaixonado. Murakami subverte a clássica história de Franz Kafka, transformando um inseto num humano, ser esse que terá que aprender a viver de acordo com essa nova condição, num mundo em conflito. Gregor Samsa terá que lidar com sentimentos e sensações contraditórios, terá que aprender a vestir-se e a caminhar, terá que começar do zero, decifrando os códigos sociais que o cercam. Terá que compreender o que é amar uma mulher e ver beleza noutro ser, semelhante, mas inusitadamente diferente.

“Em seguida, pegou um bule de metal e despejou café numa xícara branca de porcelana. O cheiro forte o fez se lembrar de algo. Não era uma lembrança direta, já passara por varias modificações. Parecia que ele observava o próprio presente estando no futuro, como se fosse uma lembrança; havia essa estranha dualidade do tempo. Parecia que a experiência e a lembrança circulavam dentro de um ciclo fechado, indo e vindo.”

Homens sem mulheres. Uma ligação na madrugada, e uma voz de homem dá a notícia ao personagem-narrador do suicídio de uma mulher. Descobrimos que o homem que telefona é o marido da vítima, e que quem atendeu a chamada é o ex-namorado de Eme, morta inexplicavelmente. Ele nunca mais havia ouvido falar de Eme, mas ela era uma marca indelével em sua vida. Toda a tristeza da perda de anos atrás é rememorada.

“Será que alguém consegue entender o tamanho da minha agonia, a profundidade do abismo em que caí quando ela partiu? Creio que não. Nem eu consigo mais me lembrar direito.”

(A escritora Joana Rosa Lima Freitas circulou suas ideias por aqui)

Haruki Murakami é um escritor e tradutor japonês. Seus livros são sucessos de vendas no Japão e internacionalmente, traduzidos para mais de 50 idiomas. Suas obras são frequentemente surrealistas, melancólicas e fatalistas, marcada por um estilo kafkiano com “temas recorrentes como alienação e solidão”. Ele é frequentemente criticado pelo establishment literário do Japão como não japonesa.





Nas estantes da Circulares, você encontra:

Homens sem Mulheres

1Q84- Livro 1

1Q84- Livro 2

1Q84- Livro 3

 
 
 

Comments


bottom of page