O essencial Torto Arado
- circulareslivros
- 2 de set. de 2021
- 3 min de leitura

O romance Torto Arado, de Itamar Vieira Jr., é uma obra singular no panorama da literatura brasileira contemporânea. Não somente porque ganhou muitos prêmios importantes nos últimos anos, mas sim por evocar personagens, cenários e ações de um território brasileiro pouco explorado na nossa ficção recente. Trata-se de uma narrativa, amparada em certos recursos da oralidade, a qual mergulha no universo feminino negro de uma comunidade rural quilombola afastada dos grandes centros urbanos, em que mulheres lutam pela existência num meio social hostil e marcado pela violência.
Dividido em três partes, cedendo o comando da voz narrativa a três vozes femininas, a obra apoia-se em estratégias literárias do romance de aprendizagem para mimetizar a trajetória atribulada, especialmente das duas irmãs protagonistas, num espaço sertanejo isolado e esquecido, com vestígios permanentes de ancestralidade africana, que enfatiza o papel decisivo das mulheres para a sustentação daquele ordenamento comunitário. O cultivo da terra, a organização da família, a solidariedade, a valorização da religiosidade, por exemplo, dependem do empenho feminino atuante num lugarejo caracterizado pela carência material extrema e pela ausência dos mecanismos modernos de Estado.

Não se trata de pesquisa antropológica travestida de literatura. Ao contrário, a leitura crítica da obra demonstra facilmente o intenso efeito estético alcançado: a composição das personagens é assinalada por um adensamento psicológico invulgar, a configuração de espaços rurais é delimitada pela presença insistente do atraso e do arcaico, a orquestração das vozes narrativas é balizada por pontos de vistas distintos e complementares sobre os dilemas femininos no contexto do mandonismo local ultrapassado. E mesmo a urdidura do enredo é pautada por um cotidiano massacrante que avança no sentido de extrair do trivial da lida diária as marcas épicas de uma batalha diuturnamente pelo direito à terra e à dignidade humana. Em Torto Arado, a literatura obriga o Brasil a se enxergar no espelho retrovisor, notadamente no que se refere à questão de uma formação histórica complexa: o arranjo colonial, a constituição da nação e os entraves do progresso. O legado escravocrata, a herança patriarcal, a modernização incompleta são marcas d’água de uma sociedade desigual e autoritária em busca de si mesma, ou talvez de uma procura já escamoteada, num longo processo de constituição nacional integradora caracterizado pela disparidade e pela debilidade aparentemente intransponíveis. (Fran Bergamo e Ariana Frances circularam suas ideias por aqui).

Itamar Vieira Júnior nasceu em Salvador, Bahia. Estreiou na literatura em 2012, com o livro de contos Dias, vencedor do XI Prêmio Projeto de Arte e Cultura (Bahia). Em 2017, lança o também premiado A oração do carrasco, finalista do Prêmio Jabuti do ano seguinte na categoria conto. Além disso, o livro conseguiu o segundo lugar no Prêmio Bunkyo de Literatura 2018 e foi vencedor do Prêmio Humberto de Campos da União Brasileira de Escritores (Seção Rio de Janeiro).
— Falo de sentimentos que todo mundo entende, como liberdade e o direito a se sentir pleno no chão em que pisamos — diz Vieira Junior. — Mesmo que trate de um universo muito particular em um lugar muito particular do Brasil, conecta os leitores.
Outros livros de Itamar Vieira Junior: Dias. Salvador: Caramurê Publicações, 2012. (contos). A oração do carrasco. Itabuna-BA: Mondrongo, 2017. (contos). Torto arado. Lisboa: LeYa, 2018; São Paulo: Todavia, 2019. (romance) Prêmios: Prêmio Jabuti de Romance Literário, Prêmio Oceanos
Mais informações sobre o livro e o autor, siga o @tortoarado.fc no insta. Torto Arado está diponível nas estantes da Circulares
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