O fetiche das armas
- circulareslivros
- 3 de set. de 2021
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O presidente americano, Joe Biden, declarou que os assassinatos em massa são uma epidemia nos Estados Unidos. Se esse tipo de violência não é privilégio dos norte-americanos, não há como negar que o número de casos naquele país é maior que em qualquer outro.
Como marca, os assassinatos em massa apresentam a ocorrência de muitas mortes, perpetradas por uma ou poucas pessoas, quase sempre aleatórias, em um curto espaço de tempo. Os assassinos em geral são homens brancos. Nesse sentido, a construção da masculinidade, baseada na violência e na valorização da força física, parece ter um papel importante no perfil desses criminosos. O local escolhido para o massacre costuma ter relação afetiva com a história do assassino. Muitas vezes, os crimes acabam em suicídio, sem que o agressor tenha conhecimento do resultado dos seus atos.
O que, no entanto, é um padrão em todos os episódios é a presença de armas de fogo potentes, colocando no centro do debate a forma de acesso a elas. Nos Estados Unidos, a posse e o porte de armas são protegidos pela Segunda Emenda à Constituição: “Uma milícia bem regulada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito das pessoas de ter e portar armas não deve ser infringido.” De acordo com a Suprema Corte dos EUA, a interpretação deste dispositivo, de redação dúbia, é que ele protege o direito individual dos cidadãos possuírem e portarem armas, e que esse direito não depende da formação de milícias.
Há um grande arsenal à disposição dos cidadãos americanos. No país estão mais de 40% das armas de uso civil de todo o mundo. Três em cada dez adultos têm pelo menos uma arma de fogo. Os casos de assassinato em massa geram grande comoção e ganham repercussão internacional, mas o grosso das vítimas de armas de fogo é aquele de pequenas ocorrências.
Em frente a familiares das crianças mortas em um ataque a uma escola em Connecticut, em 2012, e a uma escola na Flórida, em 2018, Joe Biden anunciou algumas medidas para inibir o uso de armas. Analistas dizem que o alcance das mudanças é reduzido. Foram proibidas as armas fantasmas, que são aquelas montadas em casas, sem número de série, feitas com partes de plástico, até em impressora 3D. Os estados terão incentivo para remover o porte de armas para pessoas que representem riscos a si mesmos ou a outros. Serão realizados investimentos em programas de intervenção dentro de comunidades com altos índices de violência. Para normas mais efetivas, é preciso que o Congresso Nacional atue, mas mesmo entre os democratas esse é um tema polêmico.
No Brasil, desde 2019, o Estatuto do Desarmamento, que regula a posse e o porte de armas, vem sendo sistematicamente alterado com o objetivo de facilitar o acesso da população aos armamentos. Consequentemente, 2020 foi o ano que registrou o maior aumento de venda de armas de toda a série histórica. Mais de 180 mil novas armas foram registradas na Polícia Federal. Foi também o ano em que o número de homicídios apresentou 5% de alta depois de 2 anos em queda. Maior acesso às armas, maiores índices de crimes violentos. É uma métrica que não costuma falhar.
O Presidente Jair Bolsonaro é um grande entusiasta das armas de fogo. Em sua campanha eleitoral, o gesto de “arminha” com as mãos foi sua marca registrada. Na fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, ele disse que a população armada é a salvaguarda contra uma ditadura.

É es-can-ca-rar a questão do armamento. Eu quero todo mundo armado, que povo armado jamais será escravizado. (Jair Bolsonaro em reunião ministerial no Palácio do Planalto)
Em plena noite de sexta-feira de carnaval, foram publicados quatro decretos que flexibilizam o uso e a compra de armas e o controle das munições, inclusive as de grosso calibre. É mais que um afago a categoria conhecida como CAC (caçadores, atiradores e colecionadores) que faz parte da sua base de apoio. Em resumo, os decretos ampliam de quatro para seis a autorização para posse de armas, sendo que categorias como agentes penitenciários, membros do ministério público e outros podem ter até oito armas. Diversos itens, como máquinas e prensas de recargas de munição, deixam de ser controlados pelo Exército, o que dificultará em muito a elucidação de crimes. O atestado de capacidade técnica para o manuseio de arma de fogo, anteriormente exigido, foi substituído por um atestado de habitualidade emitido por clubes e entidades de tiro, em claro conflito de interesses. Por fim, os CACs passaram a ter autorização de portar armas municiadas em qualquer trajeto e a qualquer hora do dia. Antes, essa autorização era restrita ao deslocamento residência — local da prova.
Enfim, o buraco está sendo cavado. Nosso complexo de vira-lata mais uma vez se apresenta para copiar o que há de pior das terras do tio Sam.
(Enquanto esse texto era escrito, a Ministra Rosa Weber, do STF, suspendeu trechos dos quatro Decretos comentados acima. Segundo a juíza, o Poder Executivo extrapolou sua competência para alterar uma legislação que foi aprovada pelo Congresso Nacional).

Principais casos de assassinato em massa nos Estados Unidos
Las Vegas (2017) — Stephen Paddock matou 58 pessoas, feriu quase 500 e se suicidou. As pessoas assistiam a um show de música country
Pulse (2016) — Omar Mateen, dizendo atuar em nome do grupo terrorista Daesh, matou 49 pessoas, em uma festa na boate Pulse, em Orlando.
Sutherland Springs (2017) — Devin Kelley, um ex-oficial da Força Aérea dos EUA, invadiu uma igreja e matou 26 pessoas
San Bernadino (2015) — Syed Farook e sua esposa Tashfeen Malik, americanos de origem paquistanesa, entraram atirando no Inland Regional Center, matando cerca de 14 pessoas e ferindo outras 21, sendo mortos em perseguição policial
Sandy Hook (2012) — Adam Lanza, de 20 anos, matou 20 crianças e 6 adultos na escola Sandy Hook, em Newtown. Ele se matou após o crime
Virgina Tech (2007) — Cho Seung-hui, matou 33 pessoas no Instituto Politécnico e na Universidade Estadual da Virgínia, onde residia em um dormitório. Ele foi morto na ação.
Columbine (1999) — Eric Harris e Dylan Klebold mataram 13 pessoas e depois se suicidaram no Instituto Columbine

Principais casos de assassinato em massa no Brasil
Suzano (2019) — Guilherme Taucci Monteiro e Luiz Henrique de Castro mataram 7 pessoas, sendo 5 estudantes na Escola Estadual Professor Raul Brasil. Após o massacre, um dos atiradores matou o comparsa e em seguida cometeu suicídio. Foi a nona vez que esse tipo de crime ocorreu em escolas brasileiras.
Campinas (2018) — Euler Fernando Grandolpho, 49 anos, matou 4 pessoas na Catedral Metropolitana de Campinas. Foi alvejado por policiais e se matou em seguida.
Realengo (2011) — Wellington Menezes de Oliveira, 23 anos, matou 12 crianças e feriu 13 na escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo. Cometeu suicídio em seguida.
Morumbi Shopping (1999) — Mateus da Costa Meira, estudante de medicina, 24 anos, matou 3 pessoas e feriu 4 em uma sala de cinema do Morumbi Shopping
São Gonçalo do Amarante (1997) — Genildo Ferreira de França, ex-soldado do Exército, matou 14 pessoas no mesmo dia. Tinha uma lista de 20 nomes. Não se sabe se morreu pela política ou se cometeu suicídio antes de ser atingido.

No livro Precisamos falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver, o cotitiano da mãe de um adolescente que cometeu um assassinato em massa na escola que estudava é revelado. Nas cartas que escreve para o marido ausente, ela mergulha em uma viagem de auto análise vertiginosa, pontuando as histórias do casal, as dúvidas quanto à maternidade, a rejeição mútua entre mãe e filho, a dor da sua alma por estar vivendo esse drama, o esforço em compreender a atitude do filho, a reconstrução quase impossível da vida. De lambuja, ainda somos servidos por contextos da cena política dos anos 80 e 90 nos Estados Unidos. É um livro de tirar o fôlego.
É uma história tão bem construída que quase a tomamos por real, tão recorrente que é nos noticiários. A mãe de um dos atiradores de Columbine escreveu o livro O acerto de contas de uma mãe na mesma tentativa de buscar o entendimento do ato do filho. No caso dela, uma realidade atroz.

Lionel Shriver nasceu em 1957, na Carolina do Norte, Estados Unidos. Jornalista e escritora. Ficou famosa por seu romance Precisamos falar sobre o Kevin, que foi um grande bestseller. Ela tem 7 dos seus 16 livros publicados no Brasil.
De Lionel Shriver, você encontra nas estantes da Circulares: Precisamos falar sobre o Kevin O Mundo pós-Aniversário O Grande Irmão Tempo é Dinheiro
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