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Os fatos. A autobiografia de Philip Roth


Philip Roth nos deixou em 2018, aos 85 anos. Apesar da sua morte, continua conosco por meio de sua extraordinária produção literária, marcada por livros que trataram de tudo que é humano: origem, religião, sexo, relacionamentos, morte, declínio. São textos marcados pela ironia, pela coragem de se dizer o pensa, de afrontar e colocar o dedo em feridas mal cicatrizadas. Era um crítico da sociedade americana e era criticado pela comunidade judaica.


Em 1988, ele nos brindou com uma autobiografia. Os Fatos — A autobiografia de um romancista é surpreendente, nem tanto pelos fatos revelados, mas muito mais pela descrição de como nasceu o escritor Philip Roth; pela desconstrução proposta de sua obra e de seus personagens; pela declaração afirmativa e audível de que Roth se alimenta sim de sua vida privada para construir sua obra ficcional, sem, contudo, deixar de ser inventivo, idílico, imaginativo, genial. Ao final, se o leitor está buscando a cura para a Síndrome de Zuckerman, em que autor e personagens se misturam ou são confundidos pelos leitores, é melhor desistir: Roth e Zuckerman se comunicam, por carta, para emaranhar ainda mais as percepções que temos de escritor e obra, para manter viva e pulsante a áurea de mistério em torno de Roth e de seu mundo ficcional.


A motivação para escrever Os Fatos veio de um colapso nervoso sofrido em 1987. Até este ano, Roth já havia publicado: Adeus, Columbus (1959); When She Was Good (1967); O Complexo de Portnoy (1969); Our Gang (Starring Tricky and His Friends) (1971); The Breast (1972); The Great American Novel(1973); My life as a man (1974); Reding Myself and Other (1975); O Professor do Desejo (1977); The Ghost Writer(1979); The Philip Roth Reader (1980); The Anatomy Lesson (1983); Zuckerman Acorrentado: uma trilogia e um epilogo (1985); O Avesso da Vida (1986). Tendo cruzado diversos limiares religiosos, culturais, psicológicos, sociais, antropológicos, familiares nesses livros e, adicionalmente, tendo quase cruzado o limiar da morte, durante a crise nervosa, Roth viu-se diante do desejo de se enxergar novamente, de se reconstruir, de se renovar como escritor, de relembrar suas origens literárias, de refazer os passos até se reencontrar, de se resgatar, de recuperar tudo o que perdeu no caminho, de se reapropriar da vida de Philip Roth, que parecia estar tão confundida com sua obra para si mesmo, como para os leitores. Os Fatos seria uma tentativa de mostrar o Philip Roth verdadeiro, a vida in natura sem a ficção — — uma vez que até aqui a ficção parecia sempre sobressair-se ao cotidiano, ainda que se alimentasse das histórias desse dia-a-dia, fazendo com que os personagens se tornassem mais interessantes que a realidade. Reconhece na carta inicial que envia a Zuckerman, apresentando Os Fatos, o risco que está correndo ao abrir sua vida daquela maneira: a imagem construída junto aos leitores pode desfazer-se com a publicação da rotina insípida. Roth precisava, em contrapartida, depurar, registrar, refletir, colocar em palavras escritas — somente escrevendo conseguiria concluir a reflexão.


Ao longo do Prólogo e dos capítulos que se seguem, apresenta sua infância na região de Newark, especialmente, em Weequahic, que foi cenário e até personagem de muitos de seus romances. Descreve seu pai, sua relação de embate hierárquico e cultural com o genitor, a luta paterna para sustentar a família, sendo parte da segunda geração de judeus, já nascidos nos Estados Unidos, que ainda confrontavam-se com o preconceito e a necessidade de manterem sua identidade judia, ao mesmo tempo que buscavam um lugar naquela sociedade. Relata, muito brevemente, os vínculos com sua mãe, a personalidade materna, a importância dessa figura em sua vida. Afirma:

“Ser alguma coisa para mim é ser o Philip de minha mãe, mas, no embate com o mundo que nos atira de lá pra cá, minha história ainda se deve ao impulso de ser o Roth de meu pai”.

Há muitas lacunas e silêncios, muita coisa não dita, muitos percursos traçados e não explicitados. Talvez tenha sido até onde Roth pôde ou desejou ir naquele momento. Aí vem, ao final, a carta-resposta de Zuckerman, em que é bastante duro com Roth, pedindo que não publique o manuscrito: o autor precisa do personagem, da ficção, como meio para mostrar-se verdadeiramente — — “(…) seu talento para a autoconfrontação fica mais bem servido me tendo como companhia”; do contrário, esse livro, aos olhos do personagem, “é o que praticamente qualquer artista sem sua imaginação produziria.” A autocrítica de Roth, personificada nas palavras de seu alter ego, nessa carta, parece lancinante. Apenas que Zuckerman é, ao mesmo tempo, bastante ardiloso: naquele momento, não sabia se, com a autobiografia, o escritor desejava abandonar a ficção — — e abandoná-lo por conseguinte. Para alívio de Zuckerman e para o nosso próprio, não foi o caso. Revelar-se, em sua essência, não significou o fim de Roth, mas sua humanização, a compreensão mais ampla do que está por trás de seu universo ficcional, em que estão presentes tantos elementos essenciais, tratados em Os Fatos, nem que tangencialmente. Citaria alguns desses elementos: a identidade judia vis-à-vis a identidade norte-americana; os próprios EUA, sua política, sua sociedade, sua cultura; a questão do ensino e da apreensão da realidade por meio da literatura; a descoberta de si mesmo por meio do sexo; o sexo, tão repreendido na juventude de Roth, como canal de expressão, de individualidade, de resistência. É preciso esclarecer e pontuar que muito disso fica de fora de Os Fatos — como bem e criticamente assinala Zuckerman — -, mas basta um pouco de boa vontade para compreender o que da autobiografia explicitada está na origem dessas questões apresentadas na ficção por Roth.


É um prazer enorme conhecer um pouco mais a vida de Roth, o processo de construção autoral e de criação de sua obra, a dimensão de sua genialidade, numa versão crua e humana. Os Fatos servirão de isca também: agora, mais que nunca, o desejo de conhecer uma obra tão universal será latente.


Muitos vivas ao autêntico e imprescindível Philip Roth!


(A escritora Joana Rosa Lima Freitas circulou suas ideias aqui)



Na estante da Circulares, Roth marca presença com os seguintes livros:

O Complexo de Portnoy

A Humilhação

Homem Comum

Os fatos. A autobiografia de um romancista

 
 
 

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