Pandemia a brasileira
- circulareslivros
- 2 de set. de 2021
- 4 min de leitura
Em 2020, um vírus mortal ataca toda população mundial. Sem cura ou tratamento, a nova doença deixa toda a humanidade de joelhos. Há caos nos hospitais, pessoas aguardam leitos nos hospitais, faltam enfermeiros, médicos, remédios, respiradores. Falta oxigênio. Governantes falham em conter a contaminação, e muitos fingem que nada está acontecendo. As pessoas não recebem orientações assertivas e não sabem como agir. Isolamento social, comércio fechado, todos com máscaras. Além do vírus, é preciso lidar com a animosidade e comportamentos dissonantes.
Em dezembro de 2019, isso pareceria o release de um filme meio duvidoso. Hoje, março de 2021, é a dura realidade. Os jornais mostram todo o horror do sistema de saúde colapsado em diversos pontos do Brasil. Não há tratamento para ninguém. Nem para o usuário do sistema público de saúde, nem para quem paga alguns milhares por um plano de saúde que dá acesso a hospitais que deixariam muito hotel 5 estrelas no chão. Está acontecendo exatamente agora. O número de contaminados e de mortos no mundo é assustadora: 123 milhões e 2,7 milhões, respectivamente. No Brasil, mais de 295 mil pessoas já morreram. Ainda contando.
Na história da humanidade, sempre houve a ameaça de inimigos que não se pode ver. Ebola, influenza, hendra, dengue, cólera, malária, tuberculose e tantas outras doenças. A ciência lida com diversas questões: Como esses organismos surgem? Em que animais eles se alojam antes de migrar para os humanos? Seria no macaco, num roedor, numa ave, numa borboleta, num morcego? Como eles são transmitidos para os humanos? Como impedir o seu avanço? Perguntas complexas, que apesar do progresso científico, não podem ser todas respondidas em todos os casos.
Parece paradoxal que na era em que o conhecimento mais se desenvolveu e se beneficiou de informações trocadas quase que instantaneamente, o mundo nunca esteve tão exposto a novas pandemias. A mobilidade que permite deslocamentos de um ponto a outro do planeta em 48 horas, não respeita fronteiras. O avanço sobre matas e florestas nos coloca em contato com diversos insetos e animais, favorece o surgimento das zoonoses. O HIV, causador da Aids, é uma mutação do vírus SIV, que pode ser encontrado em algumas espécies de macacos. A teoria mais aceita para o surgimento desse vírus é a do Caçador, ou seja, o SIV foi transferido para os humanos como o resultado de chimpanzés serem caçados e comidos, ou o sangue deles entrar em cortes ou feridas das pessoas durante a caça, passando a sofrer mutações para se adaptar ao novo hospedeiro.
Ainda não se sabe como o coronavírus, responsável pela atual pandemia de Covid-19, surgiu. Sabe-se que os primeiros casos foram verificados na cidade chinesa de Wuhan em dezembro de 2019, confirmados em um grupo de pessoas que estiveram no mesmo mercado popular da cidade, onde vários animais selvagens vivos eram vendidos e que poderiam estar doentes e ter passado o vírus para as pessoas. A adaptação do vírus levou à sua transmissão entre humanos, por meio da inalação de gotículas de saliva ou de secreções respiratórias que ficam suspensas no ar após alguém contaminado tossir ou espirrar.
Pelo lado positivo, a atual pandemia mostrou a capacidade de investigação e de reposta das áreas médica e científica para lidar com essas situações. A tuberculose, doença respiratória letal e contagiosa, que acompanha os homens desde sempre, só foi efetivamente dominada nos anos 1960. A varíola apenas deixou de ser mortal após séculos ceifando vidas. Várias vacinas contra a Covid-19 foram desenvolvidas em menos de 12 meses. É claro que ainda há muito o que investigar sobre esses inoculantes, mas graças a eles é possível ter esperança para o retorno de algum normal social.

A pandemia de Covid-19 ocorre em um momento político peculiar. Em várias partes do mundo, há o arrefecimento do nacionalismo, negação dos princípios científicos e primazia de um discurso falacioso que opõe o bem comum às liberdades individuais. Assistimos a maior nação do mundo ser governada por 4 anos por um homem que se elegeu com discursos racistas e xenofóbicos. Um homem que pregou o isolamento dos Estados Unidos, afrontando organismos internacionais e outros instrumentos de colaboração entre as nações. Nessa esteira, o Brasil elegeu seu trump tropical. E que azar o nosso. Ao contrário dos norte-americanos que já conseguiram acordar do pesadelo, tudo indica que passaremos todo o período da pandemia com um presidente incapaz de liderar, coordenar e acolher seu povo.
Pasmos, assistimos pessoas morrerem porque não houve gestão para a compra de vacinas, enquanto o presidente desdenha do sofrimento dos doentes. Pergunta aos berros, “até quando vão ficar dentro de casa, até quando vai se fechar tudo?”, e arremata, “Chega de mimimi. Vão ficar chorando até quando?” No dia anterior, foram registradas 1910 mortes em um único dia.

São tempos tristes. Famílias inteiras contaminadas. Pais, filhos, netos morrem na mesma semana, em intervalo de poucos dias. A lei natural da vida e morte é corrompida, nas famílias que se despedaçam. Os ritos de despedida não confortam porque não permitidos. O número de mortos diário representa várias catástrofes simultâneas por dia. Há luto, há medo, há revolta. Acima de tudo há muita dor.
Ver a história acontecendo na sua frente, ao vivo, em câmera lenta, como um roteiro de terror, é chocante. Daqui a vinte anos, ao olharem para os anos 2020, nossos netos irão falar das incompetências de governantes, da falta de informação e das ausências de atitude. Da mesma forma que escutamos divertidos sobre a revolta da vacina, muitos ficarão zonzos diante o absurdo das festas clandestinas, das aglomerações, do colapso dos hospitais e das mortes. Muitas mortes.

A história não será complacente, pois a próxima pandemia já está a espreita. Lilian M. Schwarcz e Helena M. Starling contam a história da gripe espanhola no Brasil. Conhecida como bailarina, essa doença atingiu todos os continentes, mas os registros nacionais são confusos e falhos. Pena! Não fomos capazes de olhar, como coletividade, nesse retrovisor para tirar aprendizados de momentos de crise tão dramáticos como o presente. Ou talvez simplesmente ignoramos, o que é muito pior.
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